domingo, 16 de outubro de 2011

Semelhanças entre o poker e a medicina

                 Não sou jogador de poker e todo o conhecimento que tenho do assunto é baseado em livros, internet e revistas como a Card Player. Para ficar mais simples, este texto se baseará no Aprendendo a Jogar Poker  de Leo Bello, que fala principalmente do Texas Hold’em. Não sou entendido neste assunto e posso cometer erros conceituais e de interpretação, portanto qualquer equívoco apontado será bem vindo.
                Antes que eu cause revolta em alguém, não pretendo insinuar que a medicina é como um jogo de azar, até porque o poker também não é,  e qualquer um pode apontar as inúmeras diferenças entre os dois. Minha intenção é escrever um texto mais descontraído e fazer algumas analogias para tratar sobre o campo das incertezas, probabilidades e estatísticas a que a medicina e a prática médica estão submedidas. O médico está  também sob o código do consumidor brasileiro e, portanto, é importante que o paciente saiba qual é exatamente o serviço que está comprando. Se alguém quer respostas únicas, precisas e sempre previsíveis, com resultados nunca diferentes do esperado deve procurar outro profissional e outra área de conhecimento. É frequente nos depararmos com expectativas irreais no nosso dia a dia de trabalho.
                Como alguns conceitos no raciocínio diagnóstico podem ser complicados e, mais ainda, pouco atraentes para serem lidos, quero abordar o assunto através de um jogo que se tornou bastante popular. Por coincidência ou não o autor Leo Bello é médico formado pela UFRJ.
                No primeiro capítulo do livro lemos que o “poker é um jogo facílimo de aprender, mas com tanta técnica por trás que, mesmo que você o pratique a vida toda, sempre terá algo mais para acrescentar ao seu repertório”. Não acho que a prática do médico seja simples, porém a idéia de sua atividade não é tão complicada: converse com o paciente, colha sua história, faça um exame físico minucioso, pense em algumas hipóteses diagnóticas, peça alguns exames se precisar, reavalie suas hipóteses e dê o tratamento. Todos conhecem o ditato “de médico e louco todo mundo tem um pouco”, todos dão uma de médico em algum momento da vida, portanto a idéia básica deve ser simples, não é mesmo?
                Os médicos comprometidos irão se aperfeiçoar pela vida inteira em cada um dos itens citados acima, mesmo no primeiro passo que é colher os dados do paciente. Não existe ninguém igual a outro, portanto o melhor modo de fazê-lo nunca será igual.
                No capítulo nove o autor fala sobre o teorema fundamental do poker que diz que sempre que alguém joga diferente do que jogaria se soubesse todas as cartas dos adversários, estes ganham, e todas as vezes que joga da mesma forma que jogaria se soubesse de todas as cartas, ele ganha. Do mesmo modo se algum médico soubesse de tudo que acontece e poderia acontecer com seu paciente e tomasse suas decisões baseadas nisso, ganharia da doença, caso decidisse contra essas informações, a doença ganharia.
                Não é possível saber todas as cartas do paciente e nem ter certeza de que jogo elas formam. Mesmo que fosse, ainda existe o problema de saber como ele vai reagir ao melhor tratamento possível, que pode não existir, portanto fazemos como na dica do livro: “em todas as mãos que você jogar no Texas Hold’em ... deverá sempre tentar imaginar quais as mais provávéis ... Nunca coloque o adversário em apenas uma mão, imagine algumas que ele possa ter e que o façam jogar de determinada maneira”. Fazemos hipóteses diagnósticas e trabalhamos segundo elas, mudando-as conforme o processo segue.
                Logo depois o  livro apresenta um exemplo em que o jogador recebe um par de ases que dá uma chance média de ganhar de 80% das vezes e pergunta se é possível que ele perca 10 vezes seguidas com estas mesmas cartas. Obviamente possível é, mas se ele for all-in por toda sua vida sempre que receber estas cartas e os adversários pagarem a aposta, no longo prazo ganhará 80% das vezes. O  autor refere que no caso do poker  devemos analisar os resultados gerais a partir de  10 mil mãos para termos um longo prazo suficiente. Seguindo o mesmo exemplo do par de ases o autor avalia que para saber se estas cartas estão vencendo a porcentagem esperada, no mínimo devemos ter cem mil mãos, pois se este par aparece a cada 169 mãos,  tem-se apenas 10 exemplos a serem analizados após 1700 mãos.
                Não faço idéia de quanto seria longo prazo na medicina, mas não acho que a escala seja a mesma, pois a gigante maioria dos trabalhos científicos usam um número  bem menor de pacientes para suas análises, mas essa idéia é válida: quanto mais incomum um evento ou uma doença, maior é a porção da população geral necessária para podermos fazer qualquer avaliação.
                O capítulo doze  fala sobre expectativa ou expected value que serve para avaliar o valor do evendo considerando todos os resultados possíveis para o mesmo, usado para considerar se vale a pena entrar ou permanecer na mão. Sempre que a expectativa for positiva, na média o jogador ganhará, portanto vale a pena. Um conceito parecido é usado na medicina e sempre que o benefício compensar o risco, sugerimos um procedimento ou tratamento. Por exemplo, uma apendicite complicada pode ser mortal e o risco da cirurgia é muito menor,  portanto esse procedimento é proposto na grande maioria das vezes. Notem que não há certeza.
                Este conceito serve também para dizer quando não entrar na mão ou não continuar. Isto é algo um pouco mais traiçoeiro na medicina. No dia a dia  é mais do que comum vermos pessoas inconformadas quando os médicos decidem por não instituir nenhum tratamento ou mesmo exames complementares. Quando alguém está com sintomas típicos de infecção viral como um resfriado ou uma diarréia simples, não há nada a fazer a não ser orientações e acompanhamento, ou no máximo sintomáticos. As coisas sempre podem se complicar ou não serem o que pensávamos, mas isso, infelizmente, só poderemos saber com o tempo e a progressão da doença, para isso serve o acompanhamento.
                Muitos gostam de tomar antibióticos, porém os malefícios não compensam em casos típicos de agente viral. Todo medicamento tem efeito colateral, além de nesse caso favorecer a resistência bacteriana o que pode inutilizar o medicamento quando realmente necessário. E quanto aos exames complementares? A radiografia do tórax, por exemplo, não é inócua. Uma única na vida não mudará nada, mas como saber quantas serão necessárias pelo resto da vida, além dos falsos positivos ou negativos e os outros fatores já discutidos em postagens anteriores.
                Não fazer nada é muito difícil para qualquer profissional, bem como seguir um dos princípios éticos médicos mais importante, primum non nocere (primeiro não faça mal), ou seja, não faça nada se o que fizer puder piorar o caso, pois socialmente é o menos intuitivo e mesmo judicialmente, digo isso como completo leigo e baseado apenas em relatos tanto ouvidos quanto escritos, mais complicado de defender.
                Já no capítulo catorze o pot odds e implied odds ajudam a avaliar as chances levando em conta as fichas que já estão em um pote e o quanto se deve colocar para continuar a jogar. Existem muitas situações em que conceitos parecidos aparecem na avaliação da saúde das pessoas, mas citarei alguns exemplos como a toracotomia de emergência que seria abrir o peito numa situação extrema. Se um paciente teve parada cardíaca sem atividade elétrica após trauma penetrante há pouco tempo, não importa que a chance de sucesso seja baixo, vendo as fichas que estão na mesa, qualquer tentativa que tenha alguma chance vale a pena, pelo menos enquanto a probabilidade de sequela neurológica ainda não for grande. Outro caso são os cânceres avançados. Se não houver tratamento disponível na medicina, pode-se propor tratamento experimental, se existir e se o paciente achar que vale a pena.
                Mas tanto o poker quanto a medicina não são compostos apenas por probabilidades e incertezas. Existem as certezas como quando quando alguém forma uma quadra de ases e não há chance de street flush, ou quando se forma royal street flush:  o jogo está ganho. No exemplo acima do trauma perfurante com assístole sem tratamento, o resultado também é certo.
                A principal mensagem que gostaria de transmitir é que se estivermos diante de dois jogadores ou dois médicos, um bom e outro ruim, e eles jogarem uma única vez ou atenderem um único caso, o resultado não servirá para saber quem é quem. É necessário estudar uma longa série de resultados ou o processo utilizado pelo profissional para fazer suas avaliações e tomada de decisões.
                O livro do Leo Bello é ótimo para quem quiser aprender sobre poker e eu recomendo.
Desabafo do dia:  cuidado quando diz que um médico é ruim por causa do resultado inesperado.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Modalidades de imagem



"Que legal Dr., este exame de imagem é colorido!"

     Não é incomum um radiologista ouvir isso, talvez menos nos dias atuais, mas ainda acontece, embora eu não esteja muito certo do que quer dizer essa frase. Acho que as pessoas fazem uma associação com a televisão e o cinema, em que nos seus primórdios era tudo preto e branco e com o avanço da tecnologia imagens ganharam mais cores. Talvez as pessoas pensem que o mesmo ocorra com os exames, porém não é assim que funciona.
    

     O sentido que utilizamos para a avaliação dos exames de imagem é a visão, contudo essas imagens não são produzidas originalmente pela luz. Nós entendemos como cores uma faixa específica de onda eletromagnética que vai de infravermelho a ultravioleta, isso é o que vemos e chamamos de luz. Os feixes com energias mais altas ainda são chamadas de raios-X e radiação gama.

     Os seres humanos enxergam graças aos olhos que são capazes de serem estimulados pela luz e transformar esse estímulo em informação decodificada no cérebro, portanto se não houver o estímulo, não há visão e muito menos cores.

     Os exames de imagem tem como métodos a radiografia, a tomografia computadorizada, a ultrassonografia e a ressonância magnética. Tanto a radiografia quanto a tomografia computadorizada tem as imagens produzidas pela emissão de raios-x, enquanto na ultrassonografia emitimos sons de alta frequência e na ressonância magnética usamos poderosos campos magnéticos para fazer estímulos com radiofrequência.

     O que todos eles tem em comum é que ultilizamos alguma fonte de estímulo e observamos a resposta dos diferentes órgãos e tecidos do corpo humano. Os raios-X são absorvidos ou espalhados de forma diferente em diversas partes do paciente. Já a ultrassonografia depende do grau de reflexão e refração do som. Deixando a física um pouco de lado, facilita entender que alguns tecidos deixam passar mais raios-X ou ultrassom do que outros.

     Imagine que uma pessoa fará uma radiografia do tórax. Para fazer isso emitimos um feixe de raios-X dirigido para a área estudada que deverá atravessar os diferentes tecidos do corpo humano para chegar a um filme posicionado atrás do paciente. No tórax os múltiplos fótons que compõem o feixe passarão por diferentes trajetos e obstáculos, alguns passarão por músculo, outros por músculo e osso, outros por músculo, pulmão e osso, outros quase que apenas por osso, e assim vai. Quanto mais fótons o filme radiográfico receber, mais exposto será o filme, e as regiões com menos raios-X serão menos expostas. A região do pulmão, por exemplo, será uma das regiões que mais permitirá a passagem dos feixes eletromagnéticos, pois contém ar em grande quantidade, enquanto as regiões dos ossos, principalmente a coluna vertebral, serão as regiões com menos exposição por conterem cálcio. Atualmente existe a radiografia digital que pode prescindir dos filmes radiográficos, mas a ideia é a mesma.

     Já na tomografia computadorizada usamos os mesmos raios-X porém de um modo bastante sofisticado em que os raios são emitidos de diferentes ângulos para o corpo sendo captados por múltiplos detectores ao redor. Isso vai gerar um grande volume de dados mostrando quanto do feixe de raios-X foi atenuado em qual ângulo e em que posição em relação ao eixo longitudinal do corpo do paciente. Tudo isso gera uma matriz de dados que é transformada pelo computador em imagens seccionais.

    Para a realização do exame de ultrassom ultilizamos aparelhos chamados de transdutores que possuem cristais emissores de sons de alta frequência inaudível à orelha humana. Este feixe sonoro se propaga pelo corpo humano sofrendo refração e reflexão dependendo do tecido com que se depara. Parte desse som volta para o transdutor que o capta e o transforma em sinal que, por sua vez, é transformado em imagens numa escala de cinza (de branco a completamente preto) dependendo de quanto um tecido permitiu a passagem do som a uma certa distância. Os líquidos transmitem melhor o som enquanto o osso e o ar refletem o mesmo. Quanto maior a distância do órgão a ser availado em relação ao transdutor, maior o tempo que demora para o som emitido voltar e com isso temos os dados das distâncias e profundidade dos tecidos visibilizados.

     A ressonância magnética é mais complicada. Eu particularmente acho que o protótipo desse aparelho foi encontrado numa espaçonave alienígena e durante as investigações perceberam que o efeito colateral do uso dessa máquina era produzir imagens fantásticas do corpo humano, mas só eu penso assim, então ignore. Ninguém gosta muito de física, mas provavelmente piso num terreno seguro se eu presumir que o leitor sabe o que é um átomo e que eles são formados por diferentes combinações de números de prótons, elétrons e neutrons. Pois bem, se o número de nêutrons e prótons for diferente, isso cria um momento magnético: imagine um minúsculo imã dentro do corpo. Como existem muitos e muitos deles e cada um aponta para um lugar diferente, é necessário que o corpo humano seja submetido a uma campo magnético milhares de vezes maior que o do planeta para que eles fiquem unifomes e possamos adquirir dados sobre os órgãos do paciente. Uma vez submetido a este campo desejado, a maquinaria sofisticada faz uma série de mudanças e capta as alterações que ocorrem. Nós utilizamos o átomo de hidrogénio para os estudos, pois é o elemento mais comum no nosso organismo. A água, proteínas e gorduras tem o hidrogénio ligado a diferentes elementos e formam estruturas espaciais únicas que permitem sua diferenciação. As calcificações e cortical óssea geralmente não possuem hidrogênio, portanto são identificadas como ausência de sinal. Esses dados são codificados e transformados em pixels numa escala de cinza, formando as imagens.

     Quanto maior a passagem de raio-X ou de ultrassom, mais para perto do preto será codificado uma estruturas e quanto menor a passagem, mais perto do branco. Contudo, isso é uma padronização. Se achássemos que as imagens ficariam melhores, poderíamos inverter isso. Na realidade na era digitalizada é fácil fazê-lo pelo compudador.

     Mesmo no ultrassom quando o exame é realizado com estudo Doppler colorido não existe cor de fato, são sinais captados pela máquina e decodificados como cor para facilitar nossa avaliação. Para o Doppler colorido usa-se uma escala de vermelho e azul, enquanto no power Doppler a escala é de amarelo e laranja. Utilizam-se cores nesse caso para destacar o sinal do Doppler em relação às imagens do ultrassom convencional que aparecem na escala de cinza. Ficaria muito mais difícil analisar se fosse uma escala de cinza do Doppler sobreposta nas imagens em escala de cinza do ultrassom convencional. Usa-se escala de cores diferentes para a tratografia e perfusão na ressonância magnética e no PET-CT que é a junção das imagens da medicina nuclear com as imagens da tomografia computadorizada. Nestes casos também as cores servem para destacar diferentes imagens unificadas numa única.

     A maioria dos aparelhos de ultrassom hoje em dia permitem mudar a escala de cinza para outras escalas como de azul, vermelho, amarelo, sépia, etc. Muitos já devem ter percebido essa mudança nas cores quando vêem os exames de 3D, outro tópico que causa muita confusão aos leigos que acham que esta modalidade sempre aumenta a acurácia do exame, portanto é algo a se desejar. Não é assim na gigante maioria das vezes, mas isso fica para outra postagem. O mesmo para a tomografia e ressonância magética, é possível mudar a cor das imagens se alguém achar que fica mais bonito.

     A mesma ideia serve para o Doppler espectral que é quando ouvimos, por exemplo, o batimento cardíaco de um feto durante o ultrassom. O aparelho não é um superamplificador que capta o som produzido dentro do corpo humano. O som produzido pela máquina também é uma decodificação do sinal que ele capta.

     Esta postagem pretendeu introduzir os diferentes métodos de imagem e mostrar que elas não representam a realidade como a percebemos no nosso dia a dia através dos nossos sentidos, mas são codificações de fenômenos extrassensoriais. Na próxima postagem discutirei sobre a pergunta "qual exame é o melhor?".

Desabafo do dia: não pergunte se o exame é melhor porque é colorido.