Daqui para frente procurarei escrever
sobre as dúvidas práticas que observo no meu dia a dia, mas antes gostaria de
fazer uma divagação. Irei filosofar.
São minhas opiniões e ninguém deixará
de entender as próximas postagens se não ler esta, portanto fique à vontade.
Vamos pensar nas profissões que existem
desde muito tempo atrás. Faça uma pausa para listar algumas. Carpinteiro, soldado,
cozinheiro, pastor, médico ... Bom, se existe, não me lembrei, mas não consigo pensar
em nenhuma delas que tenha mudado em essência na sua caminhada até os dias
atuais. Aumentaram seu conhecimento, as técnicas e ferramentas podem ser
incrivelmente melhores, porém os princípios básicos se mantem.
Isso vale para o médico também. Embora
sejamos fascinados com as nossas conquistas modernas e tentados a pensar que
somos muito maiores que de fato, elas são apenas parte de nossa história.
Nessas postagens todas quis mostrar que os exames complementares são
ferramentas admiráveis e úteis, entretanto continuam como complementos à
atividade que é exercida muito antes de Hipócrates. Ainda sinto que a essência
da nossa profissão é receber o paciente, conhecê-lo o melhor possível, e
oferecer o nosso conhecimento e cuidado, evitando causar o mal e nos limitando
ao que sabemos.
Para isso é necessário parar, acolher,
ouvir, observar, pensar, dizer e agir. Não está no nosso poder o resultado.
Contudo, com todas as maravilhas alcançadas com a ciência não é assim que hoje
a maioria das pessoas vê a nossa profissão.
Talvez falte entender que a ciência
médica faz parte de um conjunto de ciências chamadas de complexas. A física,
química, as ditas ciências exatas pertencem à ciência simples. Não quero dizer
que estas são áreas de conhecimento fáceis, pois o homem é capaz de lançar
naves, satélites e outros objetos a enormes distâncias e com precisão
assustadora. Mesmo quando há um erro, muitas vezes é por uma margem mínima ou
porque alguém se enganou em um pequeno item. Quem dera tivéssemos tal
capacidade nas áreas da saúde.
A medicina é mais parecida com ciências
como a meteorologia, geologia, muitas das ciências sociais e outras ciências
biológicas. São chamadas de complexas porque pequenos fatores podem causar
enormes variações no resultado final. Na matemática estaria mais para a teoria
do caos. “O bater de asas de uma
simples borboleta poderia influenciar o curso natural das coisas e, assim,
talvez provocar um tufão do outro lado do mundo” é uma alegoria referente ao
efeito borboleta.
Quando ouvimos a metereologia
dizer que há 70% de chance de chover no dia seguinte significa que terá
acertado se de todas as vezes que fizerem esta previsão, acertarem 0,7 vezes.
No entanto o que quer dizer
se um médico falar que a chance de sucesso da cirurgia é de 80%? Significa que
quanto mais vezes ele realizar essa cirurgia, sua estatística se aproximará
desse valor. Mas e para aquele único paciente diante do qual o cirurgião está?
O que significam estes números para você? Nem os matemáticos sabem direito. Se
você optar por uma cirugia, ela será realizada apenas uma vez na sua vida.
Mesmo que seja necessário realizar essa cirurgia novamente, as condições serão
completamente novas, no mínimo o paciente apresentará a região alterada pela
manipulação. Não é possível voltar no tempo, portanto é impossível realizar a
mesma cirurgia no mesmo paciente centenas ou milhares de vezes e saber se o
resultado se aproxima da estatística esperada.
Talvez se você pudesse
existir em múltiplos mundos iguais ao mesmo tempo, nas mesmas condições, isso significasse
que 80% dos seus “eus” tivessem sucesso e 20% não. Na prática isso não importa.
O ser humano difere em cerca
de 0,2% dos seus genes que proporcionam milhões de diferenças. Como o ambiente
também influencia e são inúmeras as situações externas que podem moldar uma
pessoa, fica virtualmente impossível prever como alguém é ou será.
Se levarmos em conta tudo
isso, é impossível garantir qualquer futuro aos nossos pacientes. Não
conseguimos nem ao menos garantir que alguém morrerá se cair do décimo andar.
Duvido que algum dia seja possível, mesmo com todos os avanços pela frente.
Seria necessário mudar todos os paradigmas aplicados às ciências complexas.
Tenho quase certeza de que eu, pelo menos, não verei isso acontecer.
Contudo, podemos garantir o
melhor cuidado e a aplicação das nossas melhores habilidades e era a isso que
se referia amedicina na maior parte de nossa história. Acolher e cuidar. Num
evento tão incerto que é a vida, saber que existia alguém que dedicava parte da
sua vida a tentar restabelecer a saúde ou prevenir a doença podia ser um
conforto.
Ainda hoje, quantas doenças
curamos? Muitas delas apenas controlamos, permitindo que se conviva com elas.
Outras vezes apenas podemos oferecer um diagnóstico e a garantia de uma
companhia nessa jornada. Obviamente me refiro aos médicos, não aos que fingem
ser.
Penso que o melhor critério
para achar o seu médico é procurar por aquele que existiria há um século, um
milênio ou vários. Um que acolha e que ofereça cuidados médicos. O resultado a Deus pertence.